Meu mundo sempre foi repleto de muitos sons, aromas, sabores e texturas.   Experimentei desde muito cedo formas alternativas para conseguir enxergar o que   a visão não alcançava e nem por isso me vi incapaz de conhecer e conviver com as   diversas possibilidades que me eram oferecidas. construí meu repertório de   imagens táteis, figuras perfumadas, fotografias coloridas, movimentos   audiodescritos e lembranças saborosas dos momentos vividos. Alguns desses   momentos ficarão registrados eternamente porque desafiaram-me a novas sensações.   O recomeço sempre tem o sentido de movimento, embora muitas pessoas encarem as   mudanças como etapas novas em suas vidas. Pelo contrário, cada novo desafio é   continuidade daquilo que deveria ser e que se encaixa perfeitamente no curso da   nossa história. Não caminhamos desgovernados, sem um roteiro, nem um propósito.   Almejamos metas, traçamos objetivos, projetamos lá pra frente a esperança do que   desejamos alcançar e é por causa dessa infinita busca que nos movimentamos   sempre. 
  Lembro-me com detalhes um pouco da angústia que sentia quando fui desafiada   pelo meu professor de ciências a aprender Braille ainda no sexto ano do ensino   fundamental. Seguidas vezes em suas aulas ele insistiu para que eu procurasse   uma professora que me ensinaria essa diferente maneira de ler e escrever. Embora   sua intenção fosse minimizar minha  fadiga visual com as letras   ampliadíssimas e potentes lupas que eu usava, tentava disfarçar o incômodo e   desconversava. O que eu não sabia, porém, é que estaria há exatos quatro meses   de um acontecimento que mudou a direção dessa caminhada. Conhecendo o Braille   tive a certeza de que aquela escrita pontográfica revolucionaria o modo pelo   qual passei a interagir com a informação lida e escrita.
  Em poucos minutos descobri que o mundo cabe na ponta dos dedos e ganhei   autonomia para viajar através das histórias escritas por muitas mãos. Foram   apenas quatro meses de aula e uma vida inteira desenhada simetricamente através   dos arranjos de pontos tateados, que unidos passaram a representar milhares de   imagens, sons, aromas, texturas e sabores. Sou tão grata ao Braille quanto   também sou grata a esse professor de ciências que me abriu os "olhos" para um   vasto e rico universo ainda obscuro, embora essas tantas histórias, até então,   tenham  sido guiadas por vozes e pela visão emprestadas de alguém.
  Trago também o reconhecimento pelo trabalho primoroso daquela, que então,   era a única professora de Braille da minha cidade e que, mesmo sem saber, me   inspirou a escolher o magistério como profissão, numa tentativa incansável em   libertar dezenas de pessoas cegas da escuridão intelectual que estariam vivendo.   O reconhecimento a uma incansável guerreira, minha mãe, que me apresentou e   propôs esse desafio. 
  Setembro, mês em que comemoramos a primavera, no simbolismo de uma vida que   se renasce, também é a linha que separa a minha prisão intelectual da minha   liberdade comunicacional, graças ao aprendizado do Braille. Foi nesse mês que   tive o prazer de "tatear" o primeiro livro, a primeira história lida, sentida e   comemorada a cada página virada. Avancei nos estudos e apesar  disso só   consegui compreender a belíssima mensagem do "Pequeno Príncipe" ao retomar a   leitura do começo e pela segunda vez já conseguia interpretar cada frase dentro   do seu contexto.
  Realmente o "Essencial é invisível aos olhos" porque nem tudo depende do   olhar; também existe a beleza de ver com as mãos e com os outros sentidos.   Talvez esse novo olhar mereça uma chance no coração da gente.
  Já devorei muitos livros, alegrei-me e comemorei por cada novo título em   Braille recebido. Já fiquei frustrada com o descaso das editoras em produzirem   suas obras em formato acessível e conservo ainda o desejo de entrar em uma   livraria para comprar um livro em Braille. Como pedagoga e professora de   Braille, tornei-me representante da educação especial e inclusiva e já divulguei   o método Braille em cursos, palestras e seminários para centenas de pessoas   cegas ou videntes. Jamais deixei que as tecnologias exercessem influência   negativa sobre a forma tátil de leitura e apesar disso aprendi que se não fosse   pela  leitura digital eu permaneceria isolada do universo cultural e   educacional. Os livros em Braille somem das nossas prateleiras numa proporção   inversa a vontade de que a leitura pontográfica preencha nossa vida de   histórias. Hoje, creio que para comemorar o "setembro" de redescobertas recebi   quase uma dezena de exemplares de livros em Braille, os quais vieram como   presentes nessa renovação de sentidos. Finalizo reafirmando que a experiência da   leitura em Braille é singular, pois tocar as palavras representa também   percebe-las através de todos os sentidos.
  Luciane Molina 
   
 
 
Nenhum comentário:
Postar um comentário