terça-feira, 9 de setembro de 2014

Setembro, a renovação dos sentidos

Meu mundo sempre foi repleto de muitos sons, aromas, sabores e texturas. Experimentei desde muito cedo formas alternativas para conseguir enxergar o que a visão não alcançava e nem por isso me vi incapaz de conhecer e conviver com as diversas possibilidades que me eram oferecidas. construí meu repertório de imagens táteis, figuras perfumadas, fotografias coloridas, movimentos audiodescritos e lembranças saborosas dos momentos vividos. Alguns desses momentos ficarão registrados eternamente porque desafiaram-me a novas sensações. O recomeço sempre tem o sentido de movimento, embora muitas pessoas encarem as mudanças como etapas novas em suas vidas. Pelo contrário, cada novo desafio é continuidade daquilo que deveria ser e que se encaixa perfeitamente no curso da nossa história. Não caminhamos desgovernados, sem um roteiro, nem um propósito. Almejamos metas, traçamos objetivos, projetamos lá pra frente a esperança do que desejamos alcançar e é por causa dessa infinita busca que nos movimentamos sempre.
 
Lembro-me com detalhes um pouco da angústia que sentia quando fui desafiada pelo meu professor de ciências a aprender Braille ainda no sexto ano do ensino fundamental. Seguidas vezes em suas aulas ele insistiu para que eu procurasse uma professora que me ensinaria essa diferente maneira de ler e escrever. Embora sua intenção fosse minimizar minha  fadiga visual com as letras ampliadíssimas e potentes lupas que eu usava, tentava disfarçar o incômodo e desconversava. O que eu não sabia, porém, é que estaria há exatos quatro meses de um acontecimento que mudou a direção dessa caminhada. Conhecendo o Braille tive a certeza de que aquela escrita pontográfica revolucionaria o modo pelo qual passei a interagir com a informação lida e escrita.
 
Em poucos minutos descobri que o mundo cabe na ponta dos dedos e ganhei autonomia para viajar através das histórias escritas por muitas mãos. Foram apenas quatro meses de aula e uma vida inteira desenhada simetricamente através dos arranjos de pontos tateados, que unidos passaram a representar milhares de imagens, sons, aromas, texturas e sabores. Sou tão grata ao Braille quanto também sou grata a esse professor de ciências que me abriu os "olhos" para um vasto e rico universo ainda obscuro, embora essas tantas histórias, até então, tenham  sido guiadas por vozes e pela visão emprestadas de alguém.
 
Trago também o reconhecimento pelo trabalho primoroso daquela, que então, era a única professora de Braille da minha cidade e que, mesmo sem saber, me inspirou a escolher o magistério como profissão, numa tentativa incansável em libertar dezenas de pessoas cegas da escuridão intelectual que estariam vivendo. O reconhecimento a uma incansável guerreira, minha mãe, que me apresentou e propôs esse desafio.
 
Setembro, mês em que comemoramos a primavera, no simbolismo de uma vida que se renasce, também é a linha que separa a minha prisão intelectual da minha liberdade comunicacional, graças ao aprendizado do Braille. Foi nesse mês que tive o prazer de "tatear" o primeiro livro, a primeira história lida, sentida e comemorada a cada página virada. Avancei nos estudos e apesar  disso só consegui compreender a belíssima mensagem do "Pequeno Príncipe" ao retomar a leitura do começo e pela segunda vez já conseguia interpretar cada frase dentro do seu contexto.
 
Realmente o "Essencial é invisível aos olhos" porque nem tudo depende do olhar; também existe a beleza de ver com as mãos e com os outros sentidos. Talvez esse novo olhar mereça uma chance no coração da gente.
 
Já devorei muitos livros, alegrei-me e comemorei por cada novo título em Braille recebido. Já fiquei frustrada com o descaso das editoras em produzirem suas obras em formato acessível e conservo ainda o desejo de entrar em uma livraria para comprar um livro em Braille. Como pedagoga e professora de Braille, tornei-me representante da educação especial e inclusiva e já divulguei o método Braille em cursos, palestras e seminários para centenas de pessoas cegas ou videntes. Jamais deixei que as tecnologias exercessem influência negativa sobre a forma tátil de leitura e apesar disso aprendi que se não fosse pela  leitura digital eu permaneceria isolada do universo cultural e educacional. Os livros em Braille somem das nossas prateleiras numa proporção inversa a vontade de que a leitura pontográfica preencha nossa vida de histórias. Hoje, creio que para comemorar o "setembro" de redescobertas recebi quase uma dezena de exemplares de livros em Braille, os quais vieram como presentes nessa renovação de sentidos. Finalizo reafirmando que a experiência da leitura em Braille é singular, pois tocar as palavras representa também percebe-las através de todos os sentidos.
 
Luciane Molina
 
 
 
 
 
 
  
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

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