Jornal Santuário de aparecida • 18 de março de 2012
TRANSFORMAÇÃO | INICIATIVAS DERRUBAM
BARREIRAS DE EXCLUSÃO E PRECONCEITOS Pessoas com deficiência: desafios para
a inclusão
eduardo Gois deniele Simões
Você
conhece agora histórias que se entrecruzam no que diz respeito à força de
vontade.
A
professora Luciane Maria Molina Barbosa tem 29 anos, mora em Guaratinguetá (SP)
e é pedagoga com ênfase em atendimento educacional especializado. Ela ministra
cursos de capacitação presencial ou em Educa- ção a Distância (EaD), é
palestrante e autora de vários artigos publicados em diferentes mídias
educacionais. Vence- dora do IV Prêmio Sentidos/2011, com ações realizadas na
área da inclusão da pessoa com deficiência, também mantém um blog na internet.
ao ser humano e não apenas à pessoa
Imagem: Soraia Alvarenga
rar os próprios limites físicos a fez entender que pode realizar muito mais
rar os próprios limites físicos a fez entender que pode realizar muito mais
Imagem: Luciane: “A superação é inerente
com alguma deficiência”
Soraia
Alvarenga tem 49 anos, um filho de 26, mora em São Paulo (SP) e é presidente de
uma associação que promove a inclusão de pessoas com deficiência. Ela participa
de projetos nessa área na Universidade de São Paulo (USP) e ainda trabalha com
monitora- mento de equipes de call center.
Além
da extensa lista de ativida- des, as duas têm em comum o fato de serem pessoas
com deficiência, desde a infância. Luciane possui deficiência visual, e Soraia
usa uma cadeira de rodas para se locomover. Elas são um exemplo de que é sim
possível ter uma vida normal e fazer sua parte perante a sociedade,
independentemente da condição. “Não é meu marido que tem três empregos, sou eu
mesma!”, brinca Soraia, com uma bela gargalhada. Ambas são cidadãs
economicamente ativas, que produzem muito com seu trabalho. Mas será que a
sociedade partilha dessa troca na mesma proporção? Talvez. Algumas
pessoas fazem um trabalho de formiguinha nessa longa caminha- da pela inclusão
de uma parcela da população mundial que chega a 10%, segundo estimativas da
Organização Mundial da Saúde (OMS). A
presidente da Comissão de Aces- sibilidade e coordenadora do Núcleo de Apoio a
Pessoa com Deficiência e Altas Habilidades/Superdotação da Universi- dade
Federal de Santa Maria (UFSM), no Rio Grande do Sul, Nara Joyce Viei- ra,
acredita que a principal dificuldade encontrada em relação à inclusão educa-
cional refere-se às barreiras e às atitudes impostas pela sociedade. Porém,
mesmo diante das dificuldades, há tentativas para promover uma mudança nesse
quadro, como os Núcleos de Acessibi- lidade que estão sendo implantados nas
universidades federais.
As
mudanças, porém, ainda se mostram pouco percebidas, porque as ações de inclusão
são muito recentes e as pesquisas ainda incipientes. A responsável
pelo núcleo também cita dificuldades para a inclusão em função da falta de costume
da própria comu- nidade acadêmica à realidade.
O
professor e pesquisador Carlos Bandeira de Mello Monteiro é outra pessoa cujo
trabalho tem contribuído com a inclusão. O docente realizou uma pesquisa na
Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH) da Universida- de de São Paulo
(USP) durante o ano de 2011 que analisou o desempenho de pessoas com
deficiência em jogos eletrônicos, principalmente do console Nintendo Wii, que
exige movimentação física dos jogadores.
Pessoas
com paralisia cerebral, Síndrome de Down e atletas paraolím- picos praticaram o
jogo de boliche e tênis de mesa do console. Mesmo com dificuldades no início, a
pesquisa fez com que essas pessoas aprendessem muito, tanto em aprimoramento de
coordenação motora quanto, principalmente, no que diz respeito à consciência de
que podem fazer mais coisas. “Descobri que não sou tão limitada quanto pensava.
Sou capaz de realizar mais”, relata Soraia, que participou da pesquisa
idealizada pelo professor Carlos. “Bom
seria se no futuro esses jogos servissem para reabilitação na casa das pessoas,
que pudessem avaliar o defi- ciente e propor algo baseado na dificul- dade que
ele tem”, ressalta o professor. A
pesquisa resultou no livro gratui- to Realidade virtual na paralisia cerebral,
que está disponível para download na internet. A edição foi lançada por
Monteiro com a colaboração de diver- sos pesquisadores que participaram dos
estudos.
Outro
que atualmente se preocupa com a questão é o professor e escritor padre Pedro
Cunha. Recentemente, ele
republicou uma de suas obras – Escritos de um andarilho – em formato áudiobook.
Embora não seja um forma- to exclusivamente para deficientes visuais, já é uma
opção para aqueles que procuram ter acesso a conteúdos literários em diferentes
formatos.
Padre
Pedro conta que teve a ideia de publicar o áudiobook para preencher uma lacuna
na realização dos trabalhos que já desenvolveu. Ele explica que a percepção da
importância de se atender a esse públi- co seleto e expressivo é fundamental.
A
professora Luciane explica que é preciso criar condições e levar ao
conhecimento das pessoas a existência desses trabalhos, apesar de o mercado
editorial ainda não enxergar a pessoa com deficiência visual como consumi- dora
de informação, serviços e produtos. Ela acredita que iniciativas como essa,
mesmo que isoladas, são valiosas no sentido de divulgar, cobrar e até mesmo
mostrar que há sim uma demanda. “Precisa-se ter a sensibilidade de que o ‘pouco’ representa ‘muito’.
Temos de lutar por poder entrar numa livraria e ter a autonomia de escolher uma
obra, sem estar refém do restrito mercado existente para quem lê por outros
meios. Quando comprei meu primeiro livro em braille já era professora e o fiz
para atender minhas necessida- des profissionais. Foi uma das maiores conquistas
como consumidora”, relata.
atender à diversidade construindo uma sociedade mais justa
A professora com deficiência reforça que a inclusão deve partir
justamente do princípio da diversidade, pois, se partirmos da igualdade, não
estaríamos considerando as particularidades e individualidades.
“Necessidades todos temos, independentemente de uma deficiência
aparente. Talvez todos nós tenhamos dificuldades, mas as pessoas com defi-
ciência possuem sinais com muito mais evidência, por não serem comuns à maio-
ria das pessoas, o que não reduz a capa- cidade de relacionar-se com o mundo,
com o conhecimento, com as pessoas.”
Segundo Luciane, a sociedade já começa a dar seus primeiros passos,
mesmo que pequenos. Mas, como se trata de um processo, precisa-se subir um
degrau por vez para atingir o topo da escada: a excelência.
Quanto mais as pessoas com deficiência saírem da zona
de conforto para construir sua identidade, mais serão reconhecidas e
compreendidas quanto às necessida- des. Muito se avançou em educação, em
tecnologia, em acessibilidade, mas a luta é constante e permanente.
Olhar-se no espelho, acertar os últimos
detalhes, verificar a maquia- gem, assentar os fios de cabelo “rebeldes”. Esses
gestos são bastante comuns quando modelos se prepa- ram para adentrar a
passarela, para um desfile de modas ou para entrar em um estúdio e encarar uma
sessão de fotos.
É assim também que os modelos da agência
Kica de Castro costumam portar-se antes de iniciar um traba- lho. A primeira
agência de modelos com deficiência do Brasil possui 80 profissionais, homens e
mulheres, com idades entre quatro e sessenta anos, que atuam tanto em
editoriais de moda quanto ilustrando peças publicitárias.
Tudo começou em 2007, quan- do a
fotógrafa e publicitária Kica de Castro fotografava pessoas com deficiência em
um centro de reabi- litação. Ela já fazia um trabalho de humanização das fotos
no centro e decidiu transformar isso em opor- tunidade para as pessoas com
defi- ciência. “Mesmo sem apoio, montei a agência e investi no meu projeto.
Afinal, só tentando iria saber se daria certo ou não.”
No casting, destaque para pessoas
com paraplegia, paralisia cerebral, tetraplegia, vítimas de pólio e
mielomeningocele, defi- cientes visuais e auditivos, portado- res de Síndrome
de Down e também amputados.
Caroline Marques, de 30 anos, é uma das
contratadas da agên-
Desde 2005, o Ministério da Educação
mantém o Programa de Acessibilidade na Educação Superior (Incluir), que visa
garantir o acesso pleno de pessoas com deficiência às instituições federais de
ensino superior.
Um dos objetivos principais é fomentar a
criação e a consolida- ção de núcleos de acessibilidade nas instituições
federais.
Beleza e deficiência
cia. O sonho de ser modelo vinha sendo
acalentado desde criança, mas foi interrompido por um acidente de carro, que a
fez perder os movimentos das pernas. “Achei que a cadeira de rodas não daria
essa oportunidade”, conta.
Há cinco anos, a jovem recebeu o convite
de uma amiga para partici- par de um desfile e acabou aceitando. Quando o
desfile terminou, chegou a pensar se o mercado lhe daria novas oportunidades.
As tentativas foram muitas, mas ela
sempre ouvia a resposta de que não havia vaga para seu perfil, apesar da beleza
de Caroline. Pouco tempo depois, ela teve acesso ao trabalho de Kica, por meio
de uma amiga em comum. “Entrei em contato, fiz o teste e passei.”
Desde então, Caroline nunca mais parou e
hoje encara o trabalho de mode- lo com profissionalismo. Segundo ela, é preciso
ter muita dedicação, estudo e disposição para enfrentar o preconceito. Além das
regras impostas pelo mundo fashion, os profissionais com deficiên-
cia precisam ter paciência para conquis-
tar espaço no mercado. “O maior desafio é quebrar o tabu do preconceito, pois a
cadeira de rodas é apenas um detalhe”, assegura.
A modelo vivenciou uma situa- ção de
preconceito por meio da atitu- de de um empresário que gostou de um desfile,
mas não quis associar sua marca a pessoas com deficiência. “Ele acabou
generalizando tudo e falou que a empresa dele não fazia campanhas sociais”,
conta.
Para Caroline, quem perdeu foi o próprio
empresário, que deixou de atin- gir os 45 milhões de consumidores que têm
alguma deficiência no Brasil.
autoestima lá em cima
Quando Kica de Castro começou a
trabalhar com deficientes, as pessoas que eram fotografadas não tinham a visão
de que podiam ser mode- los. “Elas tinham vaidade, mas ainda faltavam as
oportunidades reais.”
Muitas dessas pessoas sequer se olhavam
no espelho e andavam com a cabeça baixa. Quando a fotógra- fa anunciou que
estava abrindo a agência, muita gente não acreditou na viabilidade do projeto.
Após cinco anos de atividades, hoje Kica
vê uma melhora muito grande na autoestima das pessoas com deficiência
fotografadas. Hoje, os modelos da agência seguem uma rotina que em nada difere
dos profis- sionais convencionais: preocupações com cabelo, depilação, unhas,
corpo e atividade física. No estúdio ou em uma externa, antes da sessão foto-
gráfica, os modelos fazem questão de se olhar no espelho e ficam mais
confiantes em si mesmos. “Vendo o resultado das fotos, a questão de se olhar no
espelho e falar ‘sim sou uma pessoa bonita’ aumentou”, conta a fotógrafa, que
não faz qualquer tipo de manipulação por computação gráfica nas imagens.
imagem: Kica de Castro, idealizadora da primeira agência para
modelos com
deficiência do Brasil
Imagem: Caroline: “Maior desafio é
quebrar tabu do preconceito”
“incluir” ainda busca resultados no ensino superior
Desde 2005, o Ministério da Educação
mantém o Programa de Acessibilidade na Educação Superior (Incluir), que visa
garantir o acesso pleno de pessoas com deficiência às instituições federais de
ensino superior.
Um dos objetivos principais é fomentar a
criação e a consolida- ção de núcleos de acessibilidade nas instituições
federais. Na opinião da professora Nara Vieira, a inclusão tem sido uma das
principais funções dos Núcleos de Acessibilidade nas universidades,
principalmente quando se considera que ainda é muito comum professores
universitários que não sabem o que, como e quando ensinar ao estudante com
deficiência.
A docente acredita que todo esse
trabalho está focado no apoio, que é de suma importância tanto para os profes-
sores e funcionários das universidades como para os alunos.
No caso da UFSM, o Núcleo de
Acessibilidade existe desde 2007 e atende 163 alunos, no período compre- endido
entre 2008 e 2012. Ao todo são
73 deficientes físicos, 22 surdos, 34
deficientes auditivos, 31 cegos / baixa visão, um com deficiência múltipla,
dois com transtornos globais do desen- volvimento e outros 10 com transtornos
psiquiátricos.
O Núcleo oferece ações para a garantia
do acompanhamento dos alunos nos diferentes cursos, o que inclui o mapeamento
da situação dos estudantes, orientação aos professores, oferta de apoio
acadêmico aos alunos, mediante palestras, seminários, cursos de extensão,
capacitação e empréstimos de materiais.
As ações também contemplam discussões
sobre como romper as barreiras de comportamento diante dos alunos com
necessidades educacio- nais especiais e a disponibilização de um profissional
intérprete de Língua Brasileira de Sinais (Libras) para quem necessita do
serviço, assim como campanhas de conscientização da comunidade acadêmica sobre
a pessoa com deficiência.
Como a iniciativa do Núcleo é muito
recente, não há informações sobre o ingresso desses alunos no mercado de
trabalho, por exemplo. “Ainda não temos essas estatísticas, pois temos o
registro dos alunos que entraram nos cursos em 2008 e que estão prestes a
concluir sua formação, agora em 2012”, conclui Nara.
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