sábado, 22 de agosto de 2015

As aulas de ciências e os Materiais Inclusivos Adaptados

Conheci o professor Luiz em Caraguatatuba faz pouco mais de três semanas, num bate-papo informal sobre adaptações de materiais, uma proposta de trabalho de final  de curso que ele teria que apresentar. Enquanto ele me questionava sobre as características de um bom material inclusivo, fiquei imaginando o que o teria levado a escolher esse tema e, principalmente, os motivos pelos quais se interessaria pela deficiência visual. Ele queria saber como poderia representar uma célula, de modo que fizesse sentido e criasse referências táteis significativas para quem não enxerga, entretanto, que o mesmo material pudesse servir também para quem vê.
 
Busquei rapidamente em minha memória qual teria sido o meu primeiro contato com a imagem de uma célula. Não sei se pela falta de uso ou pela ausência de referências visuais, lembro-me vagamente de uma apostila com um desses desenhos contornados, enquanto eu ainda conseguia enxergar. Estudei um período tendo o suporte de lupas, letras ampliadas, desenhos com contornos bem marcados devido a baixa visão. Quando todos esses recursos se esgotaram e eu conheci o Sistema Braille, esses estudos, incluindo os de células, ficaram restritos aos conceitos verbais. Numa época em que falar sobre inclusão ainda era novidade, tive o privilégio de conviver com verdadeiros mestres. Apesar disso, a ausência desses materiais inclusivos e adaptados foi um detalhe que não desqualificou o mérito de uma educação pautada na solidariedade, qualidade e boa vontade, além de contar com uma ótima  parceria familiar.
 
Gostava de ciências, de desvendar mais sobre a vida. Passava horas criando mentalmente as combinações de um heredograma. Imaginava a eletrosfera, as moléculas em cada estado da matéria, ora presas umas às outras, ora mais distantes e mais agitadas. Foram essas as referências abstratas que criei a partir dos conceitos aprendidos. Foi também um professor de ciências da escola onde estudei, em Guaratinguetá,  que percebeu que o pouco que eu enxergava já não estava sendo suficiente e que era hora de aprender o Braille. Sua insistência me incomodava, eu tentava disfarçar e mudar de assunto, mas ele sempre me cobrava que conversasse com meus pais. Devo a ele essa descoberta tão incrível, de tantas possibilidades que se abriram e, principalmente dessa minha relação tão intensa e vital com a educação que começou dali.
 
Mais tarde, porém, tornei-me pedagoga. Foi quando uma aluna chegou com o desafio de aprender como eram as células. Eu trabalhava em uma sala de recursos ainda em 2005. Decidi não repetir conceitos decorados de um livro, mas fazer diferente. Com a parceria da minha mãe, montamos alguns materiais utilizando formas, texturas, e objetos diversos. Os materiais produzidos ficavam cada vez mais interessantes, porque agregavam elementos táteis, formas e também cores, servindo para todos os que desejassem conhecer o esquema celular. Voltei a estudar porque tinha que dar sentido e significado real aos conceitos memorizados nos ensinos fundamental e médio para repassá-los à minha aluna. Recebi alguns outros materiais produzidos em uma grande imprensa Braille e percebi o quão importante é proporcionar o conhecimento concreto daquilo que não conseguimos ver. Nesse momento eu passei a conhecer, de fato, como eram as células.
 
Lixas, barbantes, botões, tecidos, canudos, palitos, emborrachados, papeis e papelões foram a matéria-prima que deram forma a dezenas de esquemas. As imagens saltavam do papel, em modelos bidimensionais, com relevo suficiente para serem percebidos pelo tato. Porém, coloridos o bastante para apoiar também quem enxerga. Assim o verdadeiro material inclusivo é aquele que agrega características diversas sem contudo, perder sua  essência. Só que não basta contornar traços com barbante, nem colar lixa nos espaços pintados. Muito menos espalhar botões ou canudinhos para preencher e  delimitar uma área colorida.
 
Foi então que ao ser abordada por aquele professor de Caraguatatuba, tive a certeza de que sua iniciativa não se limitava a uma busca superficial que respondesse ao imediatismo de um trabalho de final de curso. Aquelas indagações iam muito além de conhecer materiais adaptados ou obter respostas objetivas sobre como pessoas cegas poderiam conhecer um esquema celular. Ele me contou sobre suas ideias para produção de materiais adaptados utilizando acetato, marcando esse plástico de modo que o relevo fosse percebido pelo tato. A conversa rendeu muitas outras novas ideias com base nas experiências que tenho com questões que envolvem a percepção tátil, sua vontade em transformar conceitos em algo palpável e a nossa disposição em levar esses conhecimentos para outros professores de ciências, garantindo o protagonismo deles no processo de inclusão.
 
Surgiu aí uma parceria entre a Secretaria dos Direitos da Pessoa com Deficiência e do Idoso, setor onde eu trabalho como técnica nos assuntos referentes à comunicação inclusiva e à Deficiência Visual, a Secretaria de educação e o setor de educação inclusiva para oferecermos uma formação para os professores de ciências sobre Adaptação de Material Didático Inclusivo. Durante o planejamento para essa ação, que ocorreu no dia 10 de agosto em um HTPC, selecionei algumas dicas que transcrevo abaixo.
 
Características a serem observadas em materiais inclusivos adaptados:
- agregar elementos táteis e visuais, tomando o cuidado para que as cores também sejam representadas com contraste, para atender pessoas com baixa visão;
- Uso de texturas para representar as partes de uma figura. Geralmente texturas opostas ou bem diferentes, quando estão uma ao lado da outra. Uma lixa para representar o núcleo da célula, mantendo o citoplasma com o fundo liso ou aveludado  e o barbante para contornar a membrana, por exemplo;
- Não existe um padrão para as texturas. Nem sempre os núcleos celulares  precisam ser representados pela lixa, porém se as figuras fizerem parte de uma sequência dentro do mesmo conceito, é importante manter uma semelhança até o final da unidade;
- As linhas que compõem o contorno em relevo de uma figura devem ser contínuas, para evitar que os detalhes se percam em linhas quebradas. Os elementos de uma imagem precisam ter começo, meio e fim;
- Uso de legenda. Sempre quando houver mais de 3 texturas diferentes, convém pensar numa legenda para facilitar a identificação das partes da figura;
- Suprimir excesso de detalhes e evitar o uso de linhas emaranhadas umas por cima das outras, além de preferir materiais com tamanhos perceptíveis ao tato, nem tão pequenos, nem tão grandes e grossos. Manter uma estética tátil e visual pertinente ao que deseja ensinar;
- Atentar-se para a ausência de textura e se essa característica também não está relacionada ao conceito. Por exemplo, num material sobre as fases da lua, temos a lua nova representada com lixa, enquanto a lua cheia mostrava um círculo liso, sem textura. Já ao contrário disso, temos que a lua nova é ausência e a lua cheia é a presença de um elemento visual no céu;
- Observar o tamanho das figuras representadas. Quanto maiores, mais complexo será compreendê-la em sua totalidade. O tato só é capaz de captar partes pequenas para interpretar a figura como um todo. Se forem grandes em demasia, as mãos precisam buscar as características percorrendo também um espaço maior;
- Dependendo da figura que se quer representar, convém fazer a decomposição dos elementos. Para a bandeira do Brasil, por exemplo,  pode-se mostrar primeiro um retângulo liso, em seguida um losango áspero, depois um círculo aveludado. Inserir as estrelas, a faixa com a mensagem "Ordem e Progresso" e por último montar a bandeira conservando todas as características táteis anteriores;
- Evitar materiais que dificultem o deslizar dos dedos, também que não ofereçam relevo suficiente, nem que priorizem um único elemento tátil. Por exemplo, ao representar as partes de um vegetal jamais fazê-la somente com barbante;
- Lembrar que nem sempre dois materiais diferentes oferecem também experiências táteis diferentes. A Lixa e o Gliter provocam sensação semelhante de aspereza;
- Em ciências, as formas são muito importantes. Por isso identifique qual é a finalidade daquela figura, se pretende trabalhar formato ou outras características concomitantes, se é viável manter espaços vazios ou diferenciá-los com texturas.
 
Além de ter trabalhado todos esses aspectos, falei sobre quem são as pessoas com deficiência visual e como interagem com o meio, recursos para leitura, escrita e locomoção. Demonstrei como guiar uma pessoa cega e contei um pouco da minha história. Aquela célula inicial foi se multiplicando. Ganhou forma, se fez viva na tentativa de incluir uma nova proposta e um novo olhar para a inclusão de alunos com deficiência no ensino regular.
 
Essa formação foi especial para mim por dois motivos: resgatar as tantas células que me fizeram descobrir o quão responsáveis somos pelo nosso futuro e que ao se multiplicarem transformam a vida de muitas pessoas. Não se pratica a inclusão apenas pensando em maneiras diferentes, adaptadas para quem não enxerga, não ouve, não fala, não tem movimentos. A inclusão é possível quando agregamos elementos, conceitos, práticas, métodos e técnicas para que todos possam participar. Certamente também para os alunos que enxergam, produzir uma célula com barbante e lixa seja tão mais significativo do que olhar a mera figura estampada nos livros. E quando os professores se deparam com esse desafio, conseguem perceber que podem e conseguem ser criativos e empreendedores em suas aulas diárias.
 
 
Notícias
 
Caraguatatuba, 12 de agosto de 2015.
 
A primeira formação continuada do segundo semestre letivo, voltada para professores de Ciências da Rede Municipal de Ensino, abordou o ensino inclusivo em sala de aula. O encontro ocorreu na EMEF Dr. Carlos de Almeida Rodrigues (Indaiá) na última segunda-feira (10/8/2015).
 
O professor Luiz Alfredo de Paula, responsável pela formação, disse que a proposta é despertar a criatividade dos educadores para a construção de materiais e atividades que atendam estudantes com baixa visão ou cegueira, como também os demais.
 
A pedagoga Luciane Molina, que é deficiente visual, apresentou vários tipos de materiais disponíveis no mercado, confeccionados com texturas e formatos diferenciados que atendem a todos. Ela também explicou a diferença de uma pessoa cega para outra com baixa visão, entre material adaptado e material inclusivo, como se portar diante de uma pessoa cega, os recursos para mobilidade, entre outros assuntos.
 
Os professores do setor de Educação Inclusiva, que atuam nas salas de recursos, também abordaram atividades para serem desenvolvidas pelos colegas da disciplina de Ciências que lecionam para estudantes com deficiência visual.
 
O professor Carlos Roberto Dias, da EMEF Profª Maria Moraes de Oliveira (Jardim Gaivotas), disse que a formação proporcionou uma nova perspectiva para o trabalho. "Não sabia que, no mercado, existem vários materiais para atender este estudante, especificamente. As dicas também foram importantes. Além disso, surgiram ideias novas nesse encontro", afirmou.
 

Um comentário:

  1. Luciane
    Como você mesmo escreveu, fui motivado pelo desafio de apresentar um trabalho para a conclusão do curso que faço na UFABC, onde, lembrei de uma atividade desenvolvida por um colega que simplesmente trabalhou com pontinhos ou alto relevo. Porém, ao começar a conversar com você, posso dizer que meus olhos se abriram para esta questão e percebi que todos nós professores, independente da área, podemos fazer a diferença na vida de TODOS os nossos alunos. Muito obrigado pelo apoio e tenha certeza que esse meu interesse pelo materiais didáticos inclusivos só está começando.

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