segunda-feira, 8 de dezembro de 2014

Teatro Cego em Caraguatatuba

Como de costume, a cada nova experiência venho trazer meu relato a vocês. Hoje foi a noite do Teatro Cego com a peça "Acorda, Amor!" da companhia Caleidoscópio Comunicação & Cultura.
 
O espetáculo fez parte do V Fórum Inclusivo da Pessoa com Deficiência de Caraguatatuba e encerrou a semana de atividades que aconteceram desde terça-feira no município.
 
Contracenaram na peça atores com e sem deficiência visual e toda trama aconteceu no escuro completo. É baseada nas canções de Chico Buarque que foram executadas durante o espetáculo. Conta a história de quatro jovens lutando contra a ditadura militar. Enquanto tentam driblar os militares,  Três rapazes disputam  o  amor da moça que já está comprometida com um deles.
 
Antes do início da peça, os atores apresentaram a proposta do teatro para o público e, com bastante delicadeza tentaram manter a plateia tranquila. De fato há muita ansiedade por parte das pessoas, que desconhecem seus próprios limites ao lidar com uma situação inusitada: ficar praticamente 60 minutos na total escuridão. Hoje o dia estava bastante claro e o sol demorou a se pôr. Foi preciso aguardar um pouco mais para que a largada fosse dada.
 
A técnica usada por uma das atrizes ao conversar com o público nesse momento que antecedeu a peça me chamou bastante atenção:  Fazer a primeira fala fora do microfone para que as pessoas cegas presentes posicionem-se corretamente tendo como referência a voz natural  e não a caixa de som do teatro. Percebi que eles estão super ligados com essas questões, embora a apresentação não seja exclusiva para cegos.
 
Essa é a grande "sacada" do teatro cego, pois coloca todo mundo em igualdade de condições. Digo-lhes que me senti igual na multidão. Ali eu não precisei me preocupar se meu entorno era acessível, a cegueira não era mais  exclusividade minha. Apenas com uma lanterna, fomos conduzidos pela produção até as cadeiras que foram divididas em quatro setores. A qualquer momento as pessoas poderiam manifestar o desejo de saírem dali caso sentissem medo, pânico ou passassem mal, porém não era permitido retornarem.
 
Confesso que eu estava curiosa em observar a reação das pessoas aos estímulos não visuais presentes na apresentação. conhecia mais ou menos a proposta, embora essa tenha sido a primeira vez que assisti ao espetáculo. E quando teve início, a trilha sonora um pouco alta me incomodou, principalmente porque eu estava do lado da caixa de som e não me agrada o barulho exagerado em qualquer evento que eu participe.
 
Começaram os diálogos, as movimentações no palco, a interação com o cenário e o envolvimento do público com a história, ora com risos, ora com espanto ou surpresa. E como é para um cego assistir a um espetáculo totalmente no escuro?
 
Foi tão comum como assistir a uma peça com "luz, câmera, ação!"
 
Mas para as pessoas ali presentes, alguns detalhes ficaram muito mais perceptíveis no escuro, embora esses já costumam servirem de referência dentro do meu repertório de sensações acerca do que está acontecendo ao meu redor, incluindo o teatro. Achei fantástico compartilhar com muita gente como eu e outros cegos percebemos tudo isso! É interessante descobrir, apenas pela voz dos atores as suas  posições no palco e imaginar onde estão. A respiração, as emoções, a entonação de voz ficaram  muito mais reais e deu até pra arriscar suas fisionomias nos diálogos. Outros recursos de sonoplastia deram muita veracidade para a obra e, o que mais me chamou a atenção foram os aromas. O cheiro do café, do bife acebolado, da pizza, do sabonete, do cachorro quente deixou todo mundo de água na boca de verdade. Tiveram  até gotas d'água que saíram diretamente do balde para a plateia. Passos, batida de porta, balançar de chave, talheres batendo, cadeiras sendo arrastadas, tiro, rádio antigo com aquele som ainda chiado, foram algumas das referências que permitiu que esse momento se tornasse muito mais colorido do que qualquer jogo de luz.
 
Enfim, sou grata por participar desse momento tão mágico e tão instrutivo, ao mesmo tempo que levou para as pessoas uma oportunidade tão real para descobrirem que as imagens vão além da visão. É possível construir todo um repertório de imagens através dos outros sentidos, que estão muito além do medo e das emoções. Parabéns ao teatro Cego por levar a ideia de que a luz não é o limite entre o ver e o não ver.
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
  
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

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